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Dom Casmurro
Texto de referência:
Obras Completas
de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente pela Editor
a Garnier, Rio de Janeiro, 1899.
CAPÍTULO PRIMEIRO DO TÍTULO
Uma noite destas, vindo da cidade para
o Engenho Novo, encontrei no trem da
Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu.
Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de
mim, falou da Lua e dos ministros, e
acabou recitando-me versos. A viagem er
a curta, e os versos pode ser que não
fossem inteiramente maus. Suce
deu, porém, que, como eu estava cansado, fechei
os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e
metesse os versos no bolso.
Š Continue, disse eu acordando.
Š Já acabei, murmurou ele. Š São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outr
a vez do bolso, mas não passou do gesto;
estava amuado. No dia seguinte entrou
a dizer de mim nomes feios, e acabou
alcunhando-me Dom Casmurro
. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos
reclusos e calados, deram curso à alcunh
a, que afinal pegou. Nem por isso me
zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me
assim, alguns em bilhetes: "Dom Casm
urro, domingo vou jantar com vocêfl.Š
"Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa
é a mesma da Renânia; vê se deixas
essa caverna do Engenho Novo, e vai lá
passar uns quinze dias comigofl.Š "Meu
caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá
aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-
lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou
moçafl. Não consultes dicionários.
Casmurro
não está aqui no sentido que eles lhe dão,
mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.
Dom veio por
ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo.
Tudo por estar cochilando! Também não
achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do
livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo
rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é
sua. Há livros que apenas terão isso
dos seus autores; alguns nem tanto.
CAPÍTULO II
DO LIVRO
Agora que expliquei o título, passo a escrev
er o livro. Antes disso, porém, digamos
os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em qu
e moro é própria; fi-la construir de
propósito, levado de um desejo tão partic
ular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá.
Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em
que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e
economia daquela outra, qu
e desapareceu. Construtor
e pintor entenderam bem
as indicações que lhes fiz: é o mesmo préd
io assobradado, três janelas de frente,
varanda ao fundo, as mesmas alcovas e sa
las. Na principal destas, a pintura do
teto e das paredes é mais ou menos igua
l, umas grinaldas de flores miúdas e
grandes pássaros que as tomam nos bicos,
de espaço a espaço. Nos quatro cantos
do teto as figuras das estações, e ao ce
ntro das paredes os medalhões de César,
Augusto, Nero e Massinissa, com os nome
s por baixo... Não alcanço a razão de
tais personagens. Quando fomos para a ca
sa de Mata-cavalos, já ela estava assim
decorada; vinha do decênio anterior. Na
turalmente era gosto do tempo meter
sabor clássico e figuras antigas em
pinturas americanas. O mais é também
análogo e parecido. Tenho ch
acarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e
lavadouro. Uso louça velha e mobília velha.
Enfim, agora, como outrora, há aqui o
mesmo contraste da vida interior, que é
pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em
tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros,
vá; um homem consola-se mais ou menos
das pessoas que perde; mais falto eu
mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui
está é, mal comparando, semelhante à
pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito
externo, como se diz nas autópsias; o in
terno não agüenta tinta. Uma certidão que
me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os
documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data
recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às
amigas, algumas datam de quinze anos, ou
tras de menos, e quase todas crêem na
mocidade. Duas ou três fariam crer nela
aos outros, mas a língua que falam obriga
muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa.
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos
respeitos, aquela vida antiga aparece-
me despida de muitos encantos que lhe
achei; mas é também exato que perdeu mu
ito espinho que a fez molesta, e, de
memória, conservo alguma recordação
doce e feiticeira. Em verdade, pouco
apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar,
jardinar e ler; como bem e não durmo mal.
Ora, como tudo cansa, esta monotoni
a acabou por exaurir-me também. Quis
variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política
acudiram-me, mas não me acudiram as
forças necessárias. Depois, pensei em
fazer uma História dos Subúrbios,
menos seca que as memórias do padre Luís
Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia
documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os
bustos pintados nas paredes entraram a
falar-me e a dizer-me que, uma vez que
eles não alcançavam reconstituir-me os te
mpos idos, pegasse da pena e contasse
alguns. Talvez a narração me desse a
ilusão, e as sombras viessem perpassar
ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do
Fausto: Aí vindes outra vez,
inquietas sombras?... Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim,
Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande
César, que me incitas a fazer os meus
comentários, agradeço-vos o conselho, e
vou deitar ao pape
l as reminiscências
que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para
alguma obra de maior tomo. Eia, comece
mos a evocação por uma célebre tarde de
novembro, que nunca me esqueceu. Tive
outras muitas, melhores, e piores, mas
aquela nunca se me apagou do espí
rito. É o que vais entender, lendo. CAPÍTULO III
A DENÚNCIA Ia a entrar na sala de visitas, quando
ouvi proferir o meu nome e escondi-me
atrás da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que
é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para
agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.
Š D. Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho no seminário?
É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.
Š Que dificuldade?
Š Uma grande dificuldade.
Minha mãe quis saber o que era. José
Dias, depois de alguns instantes de
concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e,
abafando a voz, disse que a dificuldade es
tava na casa ao pé, a gente do Pádua.
Š A gente do Pádua?
Š Há algum tempo estou para lhe dizer is
to, mas não me atrevia. Não me parece
bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do
Tartaruga
, e esta é a dificuldade, porque se eles pe
gam de namoro, a senhora terá muito que
lutar para separá-los.
Š Não acho. Metidos nos cantos? Š É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não sai de
lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz
que não vê; tomara ele que as coisas
corressem de maneira que... Co
mpreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais
cálculos, parece-lhe que to
dos têm a alma cândida...
Š Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pe
quenos brincando, e nunca vi nada que
faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze
à semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos,
desde aquela grande enchente, há dez an
os, em que a família Pádua perdeu tanta
coisa; daí vieram as nossas relações. Pois
eu hei de crer? ... Mano Cosme, você
que acha?
Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, tr
aduzido em vulgar, queria dizer: "São
imaginações do José Dias; os pequenos di
vertem-se, eu divirto-me; onde está o
gamão?"
Š Sim, creio que o senhor está enganado.
Š Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão
depois de muito examinar...
Š Em todo caso, vai sendo tempo, interr
ompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo
no seminário quanto antes.
Š Bem, uma vez que não perdeu a idéi
a de o fazer padre, tem-se ganho o
principal. Bentinho há de satisfazer os
desejos de sua mãe. E depois a igreja
brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a
Constituinte, e que o padre Feijó governou o Império...
Š Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores
políticos.
Š Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero
é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.
Š Você o que quer é um capote; ande, vá
buscar o gamão. Quanto ao pequeno,
se tem de ser padre, real
mente é melhor que não comece a dizer missa atrás das
portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há
mesmo necessidade de fazê-lo padre? Š É promessa, há de cumprir-se.
Š Sei que você fez
promessa... mas uma promessa a
ssim... não sei... Creio que,
bem pensado... Você que acha, prima Justina? Š Eu? Š Verdade é que cada um sabe melhor de
si, continuou tio Cosme; Deus é que
sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana
Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto é coisa de lágrimas?
Minha mãe assoou-se sem resp
onder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter
com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na
sala, mas outra força maior, outra emoção
... Não pude ouvir as palavras que tio
Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Glória! Prima Glória!" José
Dias desculpava-se: "Se soubesse, não teria
falado, mas falei pela veneração, pela
estima, pelo afeto, para cumprir um
dever amargo, um dever amaríssimo...fl
CAPÍTULO IV
UM DEVER AMARÍSSIMO!
José Dias amava os superlativos. Era
um modo de dar feição monumental às
idéias; não as havendo, servia a prolonga
r as frases. Levantou-se para ir buscar o
gamão, que estava no interior da casa.
Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com
as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos
últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as
calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com
um arco de aço por dentro, imobilizava-
lhe o pescoço; era então moda. O rodaque
de chita, veste caseira e leve, parecia ne
le uma casaca de cerimônia. Era magro,
chupado, com um princípio de calva;
teria os seus cinqüenta e cinco anos.
Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos
preguiçosos, mas um vagar calculado
e deduzido, um silogismo completo, a
premissa antes da conseqüência, a conseq
üência antes da conclusão. Um dever
amaríssimo! CAPÍTULO V
O AGREGADO Nem sempre ia naquele passo vagaroso
e rígido. Também se descompunha em
acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como
naquela maneira. Outrossim, ria largo, se
era preciso, de um grande riso sem
vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a
cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves,
gravíssimo.
Era nosso agregado desde muitos anos; me
u pai ainda estava na antiga fazenda
de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um
dia apareceu ali vendendo-se por médico
homeopata; levava um
Manual e uma botica. Havia entã
o um andaço de febres;
José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração.
Então meu pai propôs-lhe ficar ali vive
ndo, com pequeno ordenado. José Dias
recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre.
Š Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando
conosco.
Š Voltarei daqui a três meses.
Voltou dali a duas semanas, aceitou casa
e comida sem outro estipêndio, salvo o
que quisessem dar por festas
. Quando meu pai foi eleito
deputado e veio para o
Rio de Janeiro com a família, ele veio ta
mbém, e teve o seu quarto ao fundo da
chácara. Um dia, reinando outra vez fe
bres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que
fosse ver a nossa escravatura. José Dias
deixou-se estar calado, suspirou e acabou
confessando que não era médico. Tomara este
título para ajudar a propaganda da
nova escola, e não o fez sem estudar mu
ito e muito; mas a consciência não lhe
permitia aceitar mais doentes.
Š Mas, você curou das outras vezes. Š Creio que sim; o mais acertado, po
rém, é dizer que foram os remédios
indicados nos livros. Eles, sim; eles, abai
xo de Deus. Eu era um charlatão... Não
negue; os motivos do meu procedimento
podiam ser e eram dignos; a homeopatia
é a verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.
Não foi despedido, como pedia então; me
u pai já não podia dispensá-lo. Tinha o
dom de se fazer aceito e necessário; da
va-se por falta dele, como de pessoa da
família. Quando meu pai morreu, a dor
que o pungiu foi enorme, disseram-me,
não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele
deixasse o quarto da chácara; ao sétimo
dia, depois da missa
, ele foi despedir-se
dela.
Š Fique, José Dias. Š Obedeço, minha senhora.
Teve um pequeno legado no
testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor.
Copiou as palavras, encaixilhou-as e pe
ndurou-as no quarto, por cima da cama.
"Esta é a melhor apólice", dizia ele mu
ita vez. Com o tempo, adquiriu certa
autoridade na família, cert
a audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar
obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste
mundo. E não lhe suponhas alma subalt
erna; as cortesias que fizesse vinham
antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das
pessoas que enxovalham depressa o vestid
o novo, ele trazia o velho escovado e
liso, cerzido, abotoado, de uma elegância
pobre e modesta. Era lido, posto que de
atropelo, o bastante para divertir ao
serão e à sobremesa, ou explicar algum
fenômeno, falar dos efeitos do calor e do
frio, dos pólos e de
Robespierre. Contava
muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já
teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele,
abaixo de Deus, era tudo.
Š Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.
Š Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou
de ver que ele punha Deus no devido
lugar, e sorriu aprovando. José Dias agra
deceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de
quando em quando alguns cobres. Tio Co
sme, que era advogado, confiava-lhe a
cópia de papéis de autos.
CAPÍTULO VI
TIO COSME
Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ela enviuvou. Já então era viúvo,
como prima Justina; era a casa dos três viúvos.
A fortuna troca muita vez as mãos à natureza. Formado para as serenas funções
do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritório
na antiga rua das Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no
crime. José Dias não perdia as defesas or
ais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e
despia a toga, com muitos cumprimentos no
fim. Em casa, referia os debates. Tio
Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasão.
Era gordo e pesado, tinha a respiração
curta e os olhos dorminhocos. Uma das
minhas recordações mais an
tigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que
minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à
cocheira, segurava o freio, enquanto ele er
guia o pé e pousava no estribo; a isto
seguia-se um minuto de descanso ou re
flexão. Depois, dava um impulso, o
primeiro, o corpo ameaçava subir, mas nã
o subia; segundo impulso, igual efeito.
Enfim, após alguns instantes largos, tio
Cosme enfeixava todas as forças físicas e
morais, dava o último surto da terra,
e desta vez caía em cima do selim.
Raramente a besta deixava de mostrar po
r um gesto que acabava de receber o
mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote. Também não me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roça
(donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu não sabia
montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em
cima da besta. Quando me vi no alto (t
inha nove anos), sozinho e desamparado, o
chão lá embaixo, entrei a gritar dese
speradamente: "Mamãe! mamãe!" Ela acudiu,
pálida e trêmula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me,
enquanto o irmão perguntava:
Š Mana Glória, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?
Š Não está acostumado. Š Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigário na roça, é preciso que monte
a cavalo; e, aqui mesmo, ainda não sendo pa
dre, se quiser florear como os outros
rapazes, e não souber, há de qu
eixar-se de você, mana Glória.
Š Pois que se queixe; tenho medo. Š Medo! Ora, medo! A verdade é que eu só vim a aprender eq
uitação mais tarde, menos por gosto que
por vergonha de dizer que não sabia montar. "Agora é que ele vai namorar
deveras", disseram quando eu comecei as
lições. Não se diria o mesmo de tio
Cosme. Nele era velho costume e nece
ssidade. Já não dava para namoros.
Contam que, em rapaz, foi aceito de muit
as damas, além de partidário exaltado;
mas os anos levaram-lhe o mais do ardor político e sexual, e a gordura acabou
com o resto de idéias públicas e específicas. Agora só cumpria as obrigações do
ofício e sem amor. Nas horas de lazer vi
via olhando ou jogava. Uma ou outra vez
dizia pilhérias.
CAPÍTULO VII
D. GLÓRIA
Minha mãe era boa criatura. Quando lhe
morreu o marido, Pedro de Albuquerque
Santiago, contava trinta e um anos de id
ade, e podia voltar para Itaguaí. Não
quis; preferiu ficar perto da igreja em
que meu pai fora sepultado. Vendeu a
fazendola e os escravos, comprou alguns
que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia
de prédios, certo número de apólices, e
deixou-se estar na casa de Mata-cavalos,
onde vivera os dois últimos anos de ca
sada. Era filha de uma senhora mineira,
descendente de outra paulista, a família Fernandes.
Ora, pois, naquele ano da graça de 1857,
D. Maria da Glória Fernandes Santiago
contava quarenta e dois anos de idade.
Era ainda bonita e moça, mas teimava em
esconder os saldos da juventude, por mais
que a natureza quis
esse preservá-la da
ação do tempo. Vivia metida em um eter
no vestido escuro, se
m adornos, com um
xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os
cabelos, em bandós, eram apanhados
sobre a nuca por um velho pente de
tartaruga; alguma vez trazia a touca branca
de folhos. Lidava assim, com os seus
sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os
serviços todos da casa inteir
a, desde manhã até à noite.
Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A
pintura escureceu muito, mas ainda dá idéi
a de ambos. Não me lembra nada dele,
a não ser vagamente que era alto e usava
cabeleira grande; o retrato mostra uns
olhos redondos, que me acompanham para
todos os lados, efeito da pintura que
me assombrava em pequeno. O pescoço
sai de uma gravata preta de muitas
voltas, a cara é toda rapada, salvo um tr
echozinho pegado às orelhas. O de minha
mãe mostra que era linda. Contava então
vinte anos, e tinha uma flor entre os
dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é
que, se a felicidade conjugal pode ser co
mparada à sorte grande, eles a tiraram no
bilhete comprado de sociedade.
Concluo que não se devem abolir as lote
rias. Nenhum premiado as acusou ainda
de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a
esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem
casados de outrora, os bem-amados, os
bem-aventurados,
que se foram desta
para a outra vida, continuar um sonho pr
ovavelmente. Quando a loteria e Pandora
me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta
fatídica. São retratos que valem por origin
ais. O de minha mãe, estendendo a flor
ao marido, parece dizer: "Sou toda sua,
meu guapo cavalheiro!" O de meu pai,
olhando para a gente, faz este comentár
io: "Vejam como esta moça me quer..."
Se padeceram moléstias, não sei, como nã
o sei se tiveram desgostos: era criança
e comecei por não ser nascido. Depois da
morte dele, lembra-me que ela chorou
muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes
tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.
CAPÍTULO VIII
É TEMPO
Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca,
sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos.
Verdadeiramente foi o princípio da minha
vida; tudo o que sucedera antes foi
como o pintar e vestir das pessoas que
tinham de entr
ar em cena, o acender das
luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia
... Agora é que eu ia começar a minha
ópera. "A vida é uma ópera"
, dizia-me um velho tenor
italiano que aqui viveu e
morreu... E explicou-me um dia a definição,
em tal maneira que me fez crer nela.
Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo.
CAPÍTULO IX
A ÓPERA Já não tinha voz, mas teimav
a em dizer que a tinha. "O desuso é que me faz mal",
acrescentava. Sempre que uma companhi
a nova chegava da Europa, ia ao
empresário e expunha-lhe todas as injust
iças da Terra e do Céu; o empresário
cometia mais uma, e ele saía a bradar cont
ra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes
dos seus papéis. Quando andava, apesar de
velho, parecia cortejar uma princesa
de Babilônia. Às vezes, ca
ntarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais
idoso que ele ou tanto; vozes assim abaf
adas são sempre po
ssíveis. Vinha aqui
jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a
definição do costume, e como eu lhe
dissesse que a vida tanto podia ser uma
ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou: Š A vida é uma ópera e uma grande óper
a. O tenor e o barítono lutam pelo
soprano, em presença do baixo e dos co
mprimários, quando não são o soprano e o
contralto que lutam pelo tenor, em pr
esença do mesmo baixo e dos mesmos
comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é
excelente... Š Mas, meu caro Marcolini... Š Quê?...
E, depois, de beber um gole de licor, po
usou o cálice, e expôs-me a história da
criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que
aprendeu no conservatório do céu. Rival de
Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava
a precedência que eles tinham na distribu
ição dos prêmios. Pode ser também que
a música em demasia doce e mística
daqueles outros co
ndiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente
trágico. Tramou uma rebelião que foi
descoberta a tempo, e ele expulso do cons
ervatório. Tudo se teria passado sem
mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão,
por entender que tal gênero de recreio
era impróprio da sua eternidade. Satanás
levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais
que os outros, Š e acaso para reconcilia
r-se com o céu, Š compôs a partitura, e
logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
Š Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura,
escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e
se a achardes digna das alturas, admiti-
me com ela a vossos pés...
Š Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
Š Mas, Senhor... Š Nada! nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de
misericórdia, consentiu em
que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou
um teatro especial, este pl
aneta, e inventou uma companhia inteira, com todas as
partes, primárias e comprimá
rias, coros e bailarinos.
Š Ouvi agora alguns ensaios!
Š Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela
resultaram alguns desconcertos que a
audiência prévia e a colaboração amiga teri
am evitado. Com efeito, há lugares em
que o verso vai para a direita e a música
, para a esquerda. Não falta quem diga
que nisso mesmo está a beleza da comp
osição, fugindo à monotonia, e assim
explicam o terceto do Éden, a ária de Abel
, os coros da guilhotina e da escravidão.
Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos
motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa
das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As
partes orquestrais são aliás tratadas co
m grande perícia. Tal é a opinião dos
imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem
acabada. Um ou outro admite certas rude
zas e tais ou quais lacunas, mas com o
andar da ópera é provável que estas seja
m preenchidas ou explicadas, e aquelas
desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde
achar que não responde de todo ao pensam
ento sublime do poeta. Já não dizem o
mesmo os amigos deste. Juram que o li
breto foi sacrificado, que a partitura
corrompeu o sentido da letra, e, posto seja
bonita em alguns lugares, e trabalhada
com arte em outros, é absolutamente
diversa e até contrária ao drama. O
grotesco, por exemplo, não está no text
o do poeta; é uma excrescência para
imitar as
Mulheres Patuscas de Windsor
. Este ponto é contestado pelos satanistas
com alguma aparência de razão. Dizem
eles que, ao tempo em que o jovem
Satanás compôs a grande ópera, nem essa
farsa nem Shakespeare eram nascidos.
Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a
letra da ópera, com tal arte e fidelidad
e, que parece ele próprio o autor da
composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
Š Esta peça, concluiu o velho tenor, du
rará enquanto durar o teatro, não se
podendo calcular em que tempo será ele
demolido por utilidade astronômica. O
êxito é crescente. Poeta e músico recebem
pontualmente os seus direitos autorais,
que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos
são os chamados, poucos os escolhidos". Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
Š Tem graça...
Š Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago,
eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e
última. Um dia, quando todos os livros
forem queimados por inúteis, há de haver
alguém, pode ser que tenor, e talvez
italiano, que ensine esta verdade aos
homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o
dó, e do dó fez-se
ré, etc. Este cálice (e enchia-o novamente), este
cálice é um breve estribilho. Não se
ouve? Também não se ouve o pau nem
a pedra, mas tudo cabe na mesma
ópera... CAPÍTULO X
ACEITO A TEORIA
Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz
explica tudo, e há filósofos que são,
em resumo, tenores desempregados.
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela
verossimilhança, que é muita vez toda a
verdade, mas porque a minha vida se
casa bem à definição. Cantei um
duo
terníssimo, depois um
trio, depois um
quatuor
... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber
que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada
principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.
CAPÍTULO XI
A PROMESSA
Tão depressa vi desaparecer o agregado no
corredor, deixei o esconderijo, e corri
à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter
a minha mãe. A causa eram provavelmente
os seus projetos eclesiásticos, e a
ocasião destes é a que vou dizer, por se
r já então história velha; datava de
dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fu
i concebido. Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se co
m Deus para que o segundo vingasse,
prometendo, se fosse varão, metê-lo na igreja. Talvez esperasse uma menina.
Não disse nada a meu pai, nem antes, nem
depois de me dar à luz; contava fazê-
lo quando eu entrasse para a escola, ma
s enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o
terror de separar-se de mim; mas er
a tão devota, tão temente a Deus, que
buscou testemunhas da obrigação, confiand
o a promessa a parentes e familiares.
Unicamente, para que nos separássemos o
mais tarde possível, fez-me aprender
em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele padre Cabral, velho amigo
do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.
Prazos largos são fáceis de subscrever;
a imaginação os faz infinitos. Minha mãe
esperou que os anos viessem vindo. En
tretanto, ia-me afeiçoando à idéia da
igreja; brincos de criança, livros devoto
s, imagens de santos, conversações de
casa, tudo convergia para o altar. Quan
do íamos à missa, dizia-me sempre que
era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do
padre. Em casa, brincava de missa, Š um
tanto às escondidas, porque minha mãe
dizia que missa não era coisa de brincadeir
a. Arranjávamos um altar, Capitu e eu.
Ela servia de sacristão, e alterávamos o ri
tual, no sentido de dividirmos a hóstia
entre nós; a hóstia era sempre um doce
. No tempo em que brincávamos assim,
era muito comum ouvir à minha vizinha: "H
oje há missa?" Eu já sabia o que isto
queria dizer, respondia afirmativamente,
e ia pedir hóstia por outro nome. Voltava
com ela, arranjávamos o altar, engrol
ávamos o latim e precipitávamos as
cerimônias.
Dominus, non sum dignus
... Isto, que eu devia di
zer três vezes, penso
que só dizia uma, tal era a
gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho
nem água; não tínhamos o primeiro, e
a segunda viria tirar-nos o gosto do
sacrifício.
Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser
negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, pediam antes o seminário do
mundo que o de São José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como
alma perdida, ou pegava-me na mão, a pr
etexto de nada, para apertá-la muito.
CAPÍTULO XII
NA VARANDA Parei na varanda; ia tonto, atordoado,
as pernas bambas, o coração parecendo
querer sair-me pela boca fora. Não me
atrevia a descer à chácara, e passar ao
quintal vizinho. Comecei a andar de um la
do para outro, estacando para amparar-
me, e andava outra vez e estacava. Vozes
confusas repetiam o discurso do José
Dias: "Sempre juntos..." "Em segredinhos..." "Se eles pegam de namoro..." Tijolos que pisei e repisei naquela tarde,
colunas amareladas que me passastes à
direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da
crise, a sensação de um gozo novo, que
me envolvia em mim mesmo, e logo me
dispersava, e me trazia arre
pios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às
vezes dava por mim, sorrindo, um ar de
riso de satisfação, que desmentia a
abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas:
"Em segredinhos..." "Sempre juntos..." "Se eles pegam de namoro..." Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si
que não era feio que os meninos de qu
inze anos andassem nos cantos com as
meninas de quatorze; ao contrário, os
adolescentes daquela idade não tinham
outro ofício, nem os cantos outra utilidade.
Era um coqueiro velho, e eu cria nos
coqueiros velhos, mais ainda que nos ve
lhos livros. Pássaros, borboletas, uma
cigarra que ensaiava o estio, toda a ge
nte viva do ar era da mesma opinião.
Com que então eu amava Capitu, e Capitu
a mim? Realmente, andava cosido às
saias dela, mas não me ocorria nada entr
e nós que fosse deveras secreto. Antes
dela ir para o colégio, eram tudo trav
essuras de criança; depois que saiu do
colégio, é certo que não restabelecemos lo
go a antiga intimidade, mas esta voltou
pouco a pouco, e no último ano era co
mpleta. Entretanto, a matéria das nossas
conversações era a de sempre. Capitu
chamava-me às vezes bonito, mocetão,
uma flor; outras pegava-me nas mãos pa
ra contar-me os dedos. E comecei a
recordar esses e outros gestos e palavr
as, o prazer que sentia quando ela me
passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o
mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então
Capitu abanava a cabeça com uma grande
expressão de desengano e melancolia,
tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis; mas eu
retorquia chamando-lhe maluca. Quando
me perguntava se sonhara com ela na
véspera, e eu dizia que não, ouvia-lh
e contar que sonhara comigo, e eram
aventuras extraord
inárias, que subíamos ao Corc
ovado pelo ar, que dançávamos
na Lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar
a outros anjos que acabavam de nasce
r. Em todos esses sonhos andávamos
unidinhos. Os que eu tinha com ela não er
am assim, apenas reproduziam a nossa
familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia, alguma
frase, algum gesto. Também eu os cont
ava. Capitu um dia notou a diferença,
dizendo que os dela eram mais bonito
s que os meus; eu, depois de certa
hesitação, disse-lhe que
eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de
pitanga.
Pois, francamente, só agora entendia
a comoção que me davam essas e outras
confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu
a buscasse nem suspeitasse. Os silênc
ios dos últimos dias, que me não
descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias
palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de
recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com o
pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia
os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes,
e, segundo era louvor ou crítica, assim me
trazia gosto ou desgosto mais intensos
que outrora, quando éramos
somente companheiros de
travessuras. Cheguei a
pensar nela durante as missas daquele mê
s, com intervalos, é verdade, mas com
exclusivismo também.
Tudo isto me era agora apre
sentado pela boca de José Dias, que me denunciara a
mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo,
o mal que dissera, o mal que fizera, e o
que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria
mais que ele, nem a eterna Bondade, nem
as demais Virtudes eternas. Eu amava
Capitu! Capitu amava-me! E as minh
as pernas andavam, desandavam,
estacavam, trêmulas e crentes de abarca
r o mundo. Esse primeiro palpitar da
seiva, essa revelação da consciência a si
própria, nunca mais me esqueceu, nem
achei que lhe fosse compar
ável qualquer outra sens
ação da mesma espécie.
Naturalmente por ser minha. Natura
lmente também por ser a primeira.
CAPÍTULO XIII
CAPITU
De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:
Š Capitu! E no quintal:
Š Mamãe! E outra vez na casa: Š Vem cá! Não me pude ter. As pernas desceram-
me os três degraus que davam para a
chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às
manhãs também. Que as pernas também
são pessoas, apenas inferiores aos
braços, e valem de si mesmas, quando a ca
beça não as rege por meio de idéias.
As minhas chegaram ao pé do muro
. Havia ali uma porta de comunicação
mandada rasgar por minha mãe, quando
Capitu e eu éramos pequenos. A porta
não tinha chave nem taramela; abria-se em
purrando de um lado ou puxando de
outro, e fechava-se ao peso
de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que
exclusivamente nossa. Em crianças, fazíam
os visita batendo de um lado, e sendo
recebidos do outro com muitas mesuras.
Quando as bonecas de Capitu adoeciam,
o médico era eu. Entrava no quintal dela
com um pau debaixo do braço, para
imitar o bengalão do doutor João da Co
sta; tomava o pulso à doente, e pedia-lhe
que mostrasse a língua. "É surda, coitada!
", exclamava Capitu. Então eu coçava o
queixo, como o doutor, e acabava mandan
do aplicar-lhe umas sanguessugas ou
dar-lhe um vomitório: era a te
rapêutica habitual do médico.
Š Capitu! Š Mamãe! Š Deixa de estar esburacando o muro; vem cá. A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis
passar ao quintal, mas as pernas, há pouc
o tão andarilhas, pareciam agora presas
ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do
muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la
olhar para trás; ao dar comigo, encostou-s
e ao muro, como se quisesse esconder
alguma coisa. Caminhei para ela; nat
uralmente levava o ge
sto mudado, porque
ela veio a mim, e perguntou-me inquieta:
Š Que é que você tem?
Š Eu? Nada. Š Nada, não; você tem alguma coisa.
Quis insistir que nada, mas não achei lí
ngua. Todo eu era olhos e coração, um
coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os
olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um
vestido de chita, meio desbotado. Os cabe
los grossos, feitos em duas tranças, com
as pontas atadas uma à outra, à moda
do tempo, desciam-lhe pelas costas.
Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo
largo. As mãos, a despeito de alguns of
ícios rudes, eram curadas com amor; não
cheiravam a sabões finos nem águas de to
ucador, mas com água do poço e sabão
comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que
ela mesma dera alguns pontos.
Š Que é que você tem? repetiu.
Š Não é nada, balbuciei finalmente. E emendei logo:
Š É uma notícia.
Š Notícia de quê? Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que lhe
faria. Se a consternasse
é que realmente gostava de mim; se não, é que não
gostava. Mas todo esse cálculo foi obscu
ro e rápido; senti que não poderia falar
claramente, tinha agora a vista não sei como...
Š Então?
Š Você sabe... Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou
esburacando, como dissera a mãe. Vi un
s riscos abertos, e
lembrou-me o gesto
que ela fizera para cobri-los. Então quis
vê-los de perto, e dei um passo. Capitu
agarrou-me, mas, ou por temer que eu ac
abasse fugindo, ou por negar de outra
maneira, correu adiante e apagou o escr
ito. Foi o mesmo que acender em mim o
desejo de ler o que era.
CAPÍTULO XIV
A INSCRIÇÃO
Tudo o que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante. O que se lhe
seguiu foi ainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li
estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos:
BENTO CAPITOLINA Voltei-me para ela; Capitu tinha os ol
hos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e
ficamos a olhar um para o outro... Confissã
o de crianças, tu valias bem duas ou
três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro
falou por nós. Não nos movemos, as mãos
é que se estenderam pouco a pouco,
todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata
daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela
mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas
não traria nenhum, tal era a diferença entre o estudante e o adolescente.
Conhecia as regras do escrever, sem suspei
tar as do amar; tinha orgias de latim e
era virgem de mulheres.
Não soltamos as mãos, nem elas se deixar
am cair de cansadas ou de esquecidas.
Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e de
pois de vagarem ao perto, tornavam a
meter-se uns pelos outros... Padre futuro,
estava assim diante dela como de um
altar, sendo uma das faces a Epístola e
a outra o Evangelho. A boca podia ser o
cálice, os lábios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém
aprende, e é a língua católica dos homens. Não me tenhas por sacrílego, leitora
minha devota; a limpeza da intenção la
va o que puder haver menos curial no
estilo. Estávamos ali com o céu em nós.
As mãos, unindo os nervos, faziam das
duas criaturas uma só, mas uma só criatura
seráfica. Os olhos continuaram a dizer
coisas infinitas, as palavras de boca
é que nem tentavam sair, tornavam ao
coração caladas como vinham...
CAPÍTULO XV
OUTRA VOZ REPENTINA Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
Š Vocês estão jogando o siso?
Era o pai de Capitu, que estava à porta do
s fundos, ao pé da mulher. Soltamos as
mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego,
disfarçadamente, apagou os nossos nomes escritos.
Š Capitu! Š Papai! Š Não me estragues o reboco do muro.
Capitu riscava sobre o riscado, para apagar
bem o escrito. Pádua saiu ao quintal, a
ver o que era, mas já a filha tinha começado
outra coisa, um perfil, que disse ser o
retrato dele, e tanto podia ser dele como
da mãe; fê-lo rir, era o essencial. De
resto, ele chegou sem cólera, todo meigo,
apesar do gesto duvidoso ou menos que
duvidoso em que nos apanhou. Era um
homem baixo e grosso, pernas e braços
curtos, costas abauladas, donde lhe veio a
alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe pôs. Ninguém lhe chamava assim lá em casa; era só o agregado.
Š Vocês estavam jogando o siso? perguntou.
Olhei para um pé de sabugu
eiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos. Š Estávamos, sim, senhor; mas Be
ntinho ri logo, não agüenta.
Š Quando eu cheguei à porta, não ria. Š Já tinha rido das outras vezes; não pode. Papai quer ver?
E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente
sério; eu estava ainda sob a ação do qu
e trouxe a entrada de Pádua, e não fui
capaz de rir, por mais que devesse fazê-l
o, para legitimar a resposta de Capitu.
Esta, cansada de esperar, desviou o rosto,
dizendo que eu não ria daquela vez por
estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há co
isas que só se aprendem tarde; é mister
nascer com elas para fazê-las cedo.
E melhor é naturalmente cedo que
artificialmente tarde. Capitu, após duas
voltas, foi ter com a mãe, que continuava
à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o pai, olhando
para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:
Š Quem dirá que esta pequena tem qu
atorze anos? Parece dezessete. Mamãe
está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.
Š Está. Š Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor,
mas não tenho podido, ando
com trabalhos da repartição em casa; escrevo todas
as noites que é um desespero; negócio de
relatório. Você já viu o meu gaturamo?
Está ali no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver. Que o meu desejo era nenhum, crê-se faci
lmente, sem ser preciso jurar pelo Céu
nem pela Terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos
esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos.
Tinha-os de vária espécie, cor e tamanho. A área que havia no centro da casa era
cercada de gaiolas de canários, que fazi
am cantando um barulho de todos os
diabos. Trocava pássaros com outros amad
ores, comprava-os, apanhava alguns,